segunda-feira, 5 de outubro de 2009

AVEIRO, CIDADE DE ÁGUA, SAL, ARGILA E LUZ

Texto do Prof. Manuel Rodrigues (Universidade de Aveiro) sobre Aveiro, encontrado aqui:

AVEIRO, CIDADE DE ÁGUA, SAL, ARGILA E LUZ

1. A alma de Aveiro é feita de água, de sal, de argila. E de luz. De uma luz delicada. Frágil. Mágica. Única.
A água – estanhada e bonançosa na ria, agitada e imensa no oceano – afeiçoou a paisagem e a vida das gentes de Aveiro. Provavelmente desde o século XIII. Em 1920, o escritor Raul Brandão, referindo-se especialmente à extraordinária importância da laguna, desse «enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira», numa extensão de perto de 50 km, afirmava: «o homem destes sítios é quase anfíbio: a água é-lhe essencial à vida»; acrescentava depois: «A ria, como o Nilo, é quase uma divindade. Só ela gera e produz. Todos os limos, todos os detritos vêm carregados na vazante até à planície, onde repousam. Isto é água e estrume, terra vegetal que se transforma em leite e pão. Palpa-se a camada de terra gordurosa sobre a areia. E, além de fecundar e engordar, a ria dá-lhes a humidade durante todo o ano, e com a brisa do mar refresca durante o Estio as plantas e os seres. Uma atmosfera de humidade constante envolve a paisagem como um hálito.»
Hoje, a população já não depende de igual modo da laguna. As actividades turísticas a ela associadas estão a dar os primeiros passos. Que terão de ser sustentados. Equilibrados. A pesca cede o lugar à piscicultura. A ria ainda dá solhas, linguados, robalos, enguias e bivalves, como a ameijoa, o berbigão e o mexilhão. Mas já não é propriamente um modo de vida. A pressão das indústrias, desde o início do século XX, e a dominação económica dos serviços, nos últimos decénios, puseram as populações ribeirinhas de costas para a laguna. No entanto, a situação está a mudar. Vivemos um tempo de transição. A ria está agora a ser redescoberta e diversamente valorizada. Como que por milagre, a ria tornou-se aos olhos de todos um importante, senão o mais fecundo, recurso científico, cultural e turístico da região. Estamos a redescobrir toda a sua beleza natural, as suas ilhas, os seus canais e esteiros em mutação constante, estamos a compreender a importância da sua flora e da sua fauna, a aprender o valor incalculável do seu equilíbrio, que importa proteger.
A ria de Aveiro, «como quase todas as zonas húmidas, é um lugar de excepção para a conservação de inúmeras populações de aves, com destaque para as aves aquáticas». Como refere João Nunes da Silva, «na ria de Aveiro estão identificados dezanove tipos de habitats naturais, incluindo dois prioritários», factores que a tornaram «a zona húmida mais relevante para a conservação da avifauna aquática situada a norte do rio Tejo, sendo actualmente uma Zona de Protecção Especial para a Avifauna. Pilritos, maçaricos, borrelhos, andorinhas-do-mar, pernas-longas, alfaiates e mais recentemente flamingos, são apenas algumas espécies, entre outras, que acorrem à ria de Aveiro, sendo os meses de Inverno os mais ricos em diversidade. Dez a quinze mil é o número de aves que a ria de Aveiro recebe durante os meses de Outono e Inverno, muitas delas vindas de paragens longínquas do norte da Europa».
Além das aves, a laguna é rica em peixes. Segundo J. Eduardo Rebelo e Lúcia Pombo, durante o século XX residiam na laguna 92 espécies distintas, umas frequentes, outras mais raras, umas migradoras, outras visitantes adventícias, o que torna, em diversidade, os recursos da ria superiores, em alguns casos, a muitas lagunas e estuários da costa europeia. Também a zona dunar, entre a ria e o mar, permitiu a fixação de uma rica, muito bela e diversificada flora perfeitamente adaptada às adversidades desses ecossistemas que urge conhecer e preservar. O estorno, a morganheira-da-praia, a couve-marinha, a luzerna-da-praia, a erva-pichoneira, o trevo-de-creta, o samouco, a camarinha e o chorão das areias são algumas das muitas plantas que fixam as areias das dunas e as embelezam com as suas colorações delicadas e discretas.
Parece que finalmente todos compreenderam as palavras avisadas de Raul Brandão: «Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e, noutro país, esta região seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É um sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhes chega e os encanta. É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos. É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo e para os medrosos que só se arriscam num palmo de água – porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. Esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada…»
Apesar das mudanças das últimas décadas, a influência da ria, desse mar de água pouco profunda, das suas ilhas, dos meandros de canais e esteiros, continua decisiva no ar que respiramos. Na temperatura. Na humidade. Na luz que nos inunda e envolve. Na fina neblina que adoça cores e formas. No nosso olhar. Na nossa identidade. Com uma superfície de cerca de 11.000 hectares – 6.000 ocupados permanentemente pelas águas, 2.000 por salinas, cuidadas, abandonadas ou convertidas à piscicultura, e a restante por praias, cuja formação está ligada à ocupação agrícola, a ria de Aveiro é incontornável. Só por cegueira foi possível ignorá-la tanto tempo…
Caro visitante, permita-me que lhe volte a servir um naco mais dessa prosa limada e bela que nos deixou Raul Brandão, que, nesse mês de Julho de 1920, andou metido na ria durante três dias, «com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada e fora de toda a realidade, estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esquecido do passado, esquecido do presente», para evocar a luz de Aveiro: «É a ria também sítio para os que querem descobrir novas terras à proa do seu barco e para os que amam a luz acima de todas as coisas. Eu por mim adoro-a. É-me mais necessária que o pão. E é talvez este o ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na ria, o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às mulheres, e até às coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar… A ria é mágica e possui uma luz própria que a veste».
Com água e luz, a alma aveirense é feita de sal. Sal fino. Sal finíssimo. Diferente do sal traçado do Tejo ou do sal grosso de Setúbal. Sal. Sal a que já chamaram tudo: «ouro branco», «sangue branco», «grão divino», «sal da vida», «milagre branco». Às quadrículas azuis das marinhas chamou Almada Negreiros «janelas do céu». D. João de Lima Vidal viu nas salinas «tabuleiros de cristal». Poesia de sal. O sal inspirou poetas. O sal temperou sonhos. O sal purificou a paisagem. Mas o sal também é suor. Muito suor. É labuta de gente crestada pelo Sol há mais de mil anos. (O mais antigo escrito que testemunha a existência de salinas em Aveiro é do ano de 959). Gente laboriosa. Gente salgada. Sal da terra.
Depois dos trabalhos do Inverno – sigamos agora a musa delicada de Costa e Melo –, «antes de o sal começar a nascer, como que a medo, em espumas, ele mostra-se ao Sol que lhe dá brilhos e reflexos de beleza sem par. Depois, as janelas do céu caem e o cristal delas começa a fazer negaças à luz, chamando-a para o noivado». Um bailado meticuloso de luz e sombras, de água e espuma, de moços, mulheres e marnotos, de rodos e canastras vai esculpindo, durante meses, uma moldura de montinhos de sal, que fulgem de luz como diamantes na imensidão aberta da planície. «A cordilheira começa a tomar formas de fruto, a mostrar-se para o amadurecer da montanha que o espera em forma de cone. Com o tempo e a ajuda do vento, os cones vão fazendo parte da paisagem, cada dia mais salgada».
Mas, hoje, os saleiros já não transportam o sal para os palheiros do canal de S. Roque. Também os moliceiros já não rapam os fundos verdes da ria. O sal de Aveiro vive momentos difíceis. Os marnotos escasseiam. As marinhas, que já foram às centenas, contam-se hoje pelos dedos das duas mãos. Começam a sobejar dedos. Mas resistem. Afligimo-nos nós, que não as queremos perder. Lutamos contra o tempo. Sonhamos outros tempos para elas e para nós. Como diz o nosso poeta maior, «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades». Houve um tempo, conta o bispo Lima Vidal, em que o sal não se comprava. «Quando iam para a estação do caminho-de-ferro os carros de bois que levavam o sal, vinham as cozinheiras, estendiam ao condutor as suas vasilhas, só lhes agradecendo a dádiva». Esse tempo, como outros tempos idos, não volta mais. Hoje, o sal de Aveiro tem de concorrer com os preços mais baixos do sal produzido no norte de África…
Para si, caro visitante, como para as crianças das escolas de todo o país, que nos visitam, além das poucas salinas ainda em actividade, temos o Ecomuseu da Marinha da Troncalhada, onde ainda é possível ver e informar-se sobre o trabalho duro e belo dos marnotos, e acompanhar todas as fases da produção do «ouro branco».
Uma cidade – dizia Vasco Branco – «não se descreve – vive-se.» Sente-se. É uma viagem para os sentidos que lhe propomos. Apenas para os sentidos. Não se esqueça das palavras sábias do poema de Alberto Caeiro: «O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos). Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo… Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama nem sabe por que ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, e a única inocência é não pensar...»
Experimente um passeio de lancha até S. Jacinto. Caro viajante, vá à praia – fina língua de areia branca limpíssima –, e esqueça-se de tudo. Aproveite, depois, para ver a Reserva Natural de S. Jacinto, criada em 1979, e, por fim, delicie-se com os melhores pratos de peixe da região. Não espere almoçar em restaurantes afamados. Conte apenas com o que de melhor a vida tem. Ou, então, aventure-se numa deambulação de moliceiro na ria e sentirá o significado profundo destas palavras. Ainda é possível o sonho. Ainda é possível sentir a brisa da tarde, o odor salino da maresia, o marulhar das águas dos canais, a espuma que oculta o sal, os muitos verdes azulados da serra, lá ao fundo. A paisagem da ria ainda é pontilhada aqui e ali pelas velas brancas enfunadas e pelas proas coloridas de alguns moliceiros – «quadros flutuantes». Ainda é possível compreender o orgulho incontido das palavras de D. João de Lima Vidal: «Eu nasci em Aveiro, ao que suponho na proa de alguma bateira. Fui baptizado à mesma hora, nas águas da nossa Ria. Abriram-se-me os ouvidos ao som cadencioso dos remos no mar, ao pio estrídulo das famintas gaivotas, ao praguedo inocente dos pescadores. Encheu-se-me o peito à nascença do ar salgado da maresia [...]. Nós, os de Aveiro, somos feitos, dos pés à cabeça, de Ria. De barcos de remos, de redes, de velas, de montinhos de sal e areia, até de naufrágios. Se nos abrissem o peito, encontrariam lá dentro um barquinho à vela, ou então uma bóia ou fateixa, ou então a Senhora dos Navegantes».
Podíamos resumir com as felizes palavras de Inês Amorim: «a Ria de Aveiro inscreve-se no Olhar, entranha-se na Memória, gera Identidades, fez-se Herança e Património.»
Mostrando saber aproveitar o que a Natureza lhes deu, as populações da ria construíram embarcações várias, adaptadas ao meio e à natureza diversa das tarefas que lhes destinaram. Dessa variedade, em tamanhos e funções, contam-se os moliceiros, para a apanha do moliço, utilizado na adubação das terras, nas povoações ribeirinhas; os saleiros ou mercantéis, para o transporte do sal. (Algumas vezes acarretavam pessoas, animais e bens.) E as bateiras, para a pesca, para a caça. Nas últimas décadas, um pouco por todo o lado, surgiram os barcos de recreio.
Os moliceiros são as embarcações mais vistosas. Verdadeiros ex-libris da ria. Pela graça colorida e ingénua das proas. Pela sua imponência. Os painéis da proa são uma manifestação inconfundível da sensibilidade popular das gentes da ria. Os temas são muitos e variados: depois dos brejeiros e jocosos, os painéis retratam episódios relacionados com o mundo do trabalho, das festas, da religião, da vida política, da história e da vida local. De fundo chato, sem quilha, construídos em pinho revestido de breu negro, os moliceiros têm um comprimento que oscila entre os nove e os quinze metros e um mastro de oito metros. Nas primeiras décadas do século XX chegaram a ser mais de mil. Carregavam multidões para o S. Paio da Torreira. Serão agora uma meia centena. Esperam turistas.
Além da pesca e da produção de sal, a ria foi, durante séculos, o principal meio de ligação entre todas as zonas ribeirinhas. Mesmo depois da chegada do caminho-de-ferro, em 1864, devido a um conjunto de factores, como a inexistência de uma rede viária de ligação entre as poucas estações do caminho-de-ferro e os centros consumidores, o comboio não desalojou de imediato as velhas rotas dos mercados inter-regionais e os tradicionais meios de transporte, especialmente entre as populações das localidades que convivem com a ria e com os rios Vouga, Antuã, Caster e Boco, e com as muitas ribeiras, maiores e menores, que nela desaguam, como as de Pardelhas, Canelas, etc. A ligação entre Ovar e Aveiro, como parte integrante da velha rota de recovagem entre Aveiro e o Porto, está abundantemente documentada.
Em Aveiro não há pedra. Foi desde sempre um bem raro. Só ao alcance de alguns. Por isso, a pedra chegou-nos sempre de fora. Chegou-nos o calhau rolado, preto, como lastro dos navios que carregavam cerâmica e sal para a ilha da Madeira. Chegou-nos de barco, por rios e canais, o grés vermelho das pedreiras de Eirol com que se construiu a muralha medieval e uma boa parte das melhores casas da cidade, antes do uso intensivo do tijolo. E antes do comboio e do camião, a pedra chegou-nos em carros de bois de pedreiras distantes: o duro granito, de Sever do Vouga e Oliveira de Azeméis; com ele deram-se formas gotizantes ao velho liceu do século XIX; o sublime calcário de Ançã e Cantanhede, com que se ergueram igrejas, conventos, palácios, jazigos e fontanários. E calçadas. Nós, aveirenses, passeamos orgulhosos sobre um extenso e surpreendente tapete de calcário branco e preto (por vezes rosa, também), com formas várias inspiradas pela ria e pelo mar: conchas, búzios, caranguejos, barcos, âncoras, peixes, estrelas-do-mar, flores, pássaros ou desenhos geométricos muito variados. Na Praça Marquês de Pombal preservámos de forma exemplar as doze elegantes figuras do Zodíaco, desenhadas por um dos maiores pintores do século XX, António Quadros. A calçada de Aveiro foi por duas vezes distinguida com o Prémio Nacional A Calçada Portuguesa. Em 2001 e em 2003.
A «pedra» de Aveiro não é pedra, é adobe, um material pobre, poroso e friável, uma tosca mistura de cal, areia e lodo, que coloca sérios problemas de conservação e reutilização dos velhos edifícios. Com adobes fizeram-se, durante séculos, os muros, as casas pobres da cidade e dos campos, mesmo as casas rurais de famílias abastadas. Os telhados eram de «telha de canudo», produzida nas muitas olarias da região. Telha artesanal que resistiu durante décadas à produção industrial de telha marselha. Faltava a pedra, mas havia barro. Em toda a parte há barro. Não é possível pensar Aveiro sem barro. Sem oleiros. Sem azulejos. Sem cor. Muita cor. A alma de Aveiro tem barro nas suas entranhas.
O ceramista José Queiroz afirma que, «como região cerâmica, Aveiro deve ser uma das mais antigas em Portugal». Apoiado nos estudos de J. A. Marques Gomes e de Joaquim de Vasconcelos, acrescenta: «Do século XVI ainda restam vestí¬gios, e os produtos desta indústria, dos dois séculos seguintes, em barro ver¬melho, provam o grande desenvolvimento da olaria nesta antiquíssima terra». Posteriormente, outros estudos, diversos nos métodos como nos pro¬pó¬sitos científicos e culturais, mostraram que essa actividade, de facto, é antiga de muitos séculos em Aveiro.
Dos estudos pioneiros de Alberto Souto, em Cacia e em Mamodeiro, às recentes escavações em curso na Ria de Aveiro, sob a direcção de Francisco Alves – onde foi descoberto um navio do século XV –, a Arqueologia mostrou os limites das fontes escritas. Segundo Manuel Barreira, da região de Aveiro, nas centúrias de Seiscentos e Setecentos, a par «das preciosas madeiras de velhos carvalhos e pinheiros, dos vinhos de Lafões e da Bairrada e dos minérios do Arestal, e, sobretudo, do abundante sal, os produtos da olaria fizeram a carga de algumas centenas de navios que anualmente demandavam os portos franceses, flamengos e ingleses». As mais recentes descobertas arqueológicas, nos terrenos da Universidade de Aveiro, na Agra do Crasto, em Verdemilho, apontam para uma antiguidade bem mais remota – o 2.º milénio a. C.
Com o aparecimento das fábricas de telha e de tijolo, no final do século XIX, os telheiros das velhas olarias começaram a desaparecer. A seguir, aos poucos, foram-se os louceiros. Foi chegando a louça de novos materiais... Primeiro, foi a louça metálica – de ferro simples e esmaltado, de alu¬mínio e, nas últimas décadas, de inox, de plástico, de vidro vulgar, opalino, de pirex e de porcelana. Foi um declínio lento, mas devastador. A partir de 1960, acentua-se o crescimento ur¬bano e decresce em número e importância económica a população rural. O «cerco» às olarias completa-se com o regresso dos emigrantes, dos «retornados», com a pe¬netração da televisão e da electricidade mesmo nos lugares mais recônditos e com a subordinação de vastas zonas rurais à implacável ló¬gica do mercado.
Mas é o azulejo que dá a toda a região de Aveiro uma personalidade bem vincada. Sobretudo o azulejo de finais de Oitocentos e das primeiras décadas do século das grandes guerras. Azulejo semi-industrial das fábricas de Aveiro. Azulejo de estampilha. De mil cores. De mil padrões. É o azulejo de fachada que dá à cidade uma riqueza cromática única. Caleidoscópica. De manhã, ou ao fim da tarde, a luz do sol esmaga-se estrondosamente contra as fachadas de azulejos, desmaterializando-as, esventrando-as, num espectáculo de revérberos brancos ou cores incendiadas. É também um património ameaçado. Porque é frágil. Demasiado frágil. Porque anda no ar um certo espírito novo-rico, ignorante e provinciano. Dissipador. Capaz de vender a alma ao diabo por um brilhozinho dourado de pechisbeque.
O palacete do «brasilei¬ro» Sebastião de Carvalho Lima – pai do escritor Jaime de Magalhães Lima e de Sebastião de Magalhães Lima, dirigente republicano e Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa – foi o pri¬meiro edifício da cidade a ter a fachada revestida de azulejo. (Hoje é sede da Associação de Municípios de Aveiro.) Estávamos em 1857. No ano seguinte, no Campeão do Vouga, segundo periódico local aveirense, pode ler-se: «Agora começou a moda do azulejo. Há um ano, não havia uma casa que o tivesse. Os proprietá¬rios con¬tenta¬vam-se com pintu¬ras a cola. Apenas apareceram os primei¬ros azulejos na casa do Sr. Sebastião de Carvalho Lima, ao Carmo, todos qui¬seram por azule¬jo». Dez anos depois, a fachada da igreja da Misericór¬dia vestia-se de azule¬jo azul e branco estampilhado, fabricado também no Porto e apli¬cado por operá¬rios da Cidade Invicta. Até então, o azulejo recobria apenas o interior de igrejas e de palácios.
Nos anos seguintes assistiu-se a uma profunda alte¬ração da paisagem ur¬bana. O azulejo protege e embeleza as frustes facha¬das das casas, nomeadamente as que se ergueram com materiais pobres. O azulejo transfigura a arquitectura e valoriza a composição dos alçados pela força dinâmica das suas composições, pelos surpreendentes efeitos visuais dos seus padrões. E sem o azulejo a cidade não teria a delicada luminosidade cromática que a singulariza.
É também o azulejo que distingue as manifestações arquitectónicas Arte Nova de Aveiro das demais. Manifestações artísticas epidér¬micas, híbridas, de forte efeito cenográfico, que favorecem fachadas tipologicamente banais, mercê das potencialidades cromáticas, do brilho e da luz intensa do azulejo. É extraordinário que uma pe¬quena cidade de pro¬víncia, escassamente urbanizada e in¬dus¬trializada, no início do século XX, detenha ainda um surpreendente conjunto de edifícios com decoração diversamente filiável na Arte Nova. Esse fenómeno ter-se-á ficado a dever, antes de mais, ao azulejo.
Apesar do muito que já se perdeu, os painéis figurados de azulejos, em tons azuis, a maioria das três primeiras décadas de Novecentos, tem resistido melhor à usura do tempo e à cegueira dos homens. Neles, a cidade desnuda-se. Auto-retrata-se. As temáticas e as técnicas testemunham sensibilidade e um olhar atento aos movimentos artísticos que se sucediam.
Caro visitante, depois dos encantadores painéis da estação do caminho-de-ferro, onde os pintores da Fábrica da Fonte Nova, Francisco Luís Pereira e Licínio Pinto, pintaram postais e fotografias de temas regionais, proponho-lhe que vá ao Parque do Infante D. Pedro. Delicie-se com o verismo fotográfico daquelas figuras femininas, que nos olham sorridentes há perto de um século, com a beleza ecléctica das cercaduras. Pelo caminho, certamente não deixará de se admirar com o sincretismo da composição e o apuro técnico dos belos postais alusivos às quatro estações, na Rua Manuel Firmino, com os magníficos rosas e verdes da fachada arte nova da Rua João Mendonça, com os painéis-cartazes publicitários da antiga Sapataria Leitão, com a monumentalidade dos azulejos que revestem a Casa das Zitas, na Praça Marquês de Pombal. Os percursos possíveis são muitos.
Nas últimas duas décadas, alguns dos melhores artistas vivos da cidade deram continuidade a essa tradição. Com a assinatura de Vasco Branco, Cândido Teles, Jeremias Bandarra e José Augusto, aos poucos, aqui e ali, têm surgido painéis de azulejos de uma beleza extraordinária. Com outras técnicas. Com outras cores. Ao ceramista Vasco Branco, que também é escritor e cineasta, ficaremos em dívida eternamente pelos magníficos painéis da Praça da República e do Viaduto Aveiro-Esgueira. Beleza e monumentalidade.
Esteja atento, caro visitante. Não se fie em guias turísticos e quejandos. Vá pelo seu pé. Vá com os sentidos despertos. Descubra por si. Percorra a cidade, rua a rua, e palmilhe as freguesias circunvizinhas. Dê uma saltadinha a Ílhavo e a Ovar. Será recompensado.

2. A natureza das relações entre o homem e o meio tem gerado discussões muito vivas. Por mim, partilho o ponto de vista do historiador Lucien Febvre: «Subordinação do homem às condições naturais? Pelo contrário. O que marca, antes de mais, é o engenho do homem, a sua iniciativa, a sua plasticidade, a sua liberdade, de modo algum a sua servidão. A sua dependência em relação ao meio local? Este não fez senão tornar mais resplandecente, em certos casos, o poder e a variedade de invenção de que ele é capaz». De facto, assim foi entre nós. Vastas manchas de areia, no passado, são agora terrenos férteis, úberes, garantindo o sustento de milhares de famílias. Até a própria cidade de Aveiro, que em meados do século XIX era uma urbe relativamente pobre e periférica, conseguiu impor-se como capital de um extenso distrito litoral, entre o Porto e Coimbra, mercê da vontade férrea, da inteligência, da extraordinária capacidade de realização de uma elite que integra os nomes mais nobres da história da cidade. Aveiro é hoje a capital de uma região rica e em franco desenvolvimento, porta da Europa, situada no cruzamento entre a auto-estrada (A1), a linha férrea do Norte, o Itinerário Principal N.º 5 (IP5) e o acesso ao porto comercial – porta para o mundo. Há cerca de século e meio que as elites políticas e económicas têm sabido aproveitar as conjunturas favoráveis, potenciando os recursos económicos e as ligações ao poder central. De facto, nos últimos 150 anos operou-se um milagre económico em Aveiro que se fica a dever à vontade dos homens. Não à geografia. Esta condiciona, mas não determina.
Razão tem Vasco Branco quando assevera que «a cidade é a sua gente». A cidade é feita por gente. A cidade é feita pelos heróis do dia-a-dia, gente simples, dizemos nós, de quem a memória frágil dos homens não guardou sequer os nomes. A cidade também é obra daqueles «que por obras valerosas se vão da lei da Morte libertando». Pobres e ricos. Fracos e poderosos. Por todos. Pelos que nela nasceram como pelos que a adoptaram como sua. Irmanados pelo sonho. Irmanados pela planura da paisagem. A cidade é obra de gerações de gente laboriosa que a modelaram, que lhe deram o colorido, que lhe escreveram a história, que a distinguiram, que a marcaram indelevelmente.
Aveiro foi erguida ao longo de mais de mil anos por gerações de mulheres e homens avigorados em trabalhos e dificuldades mil. Mas livres. Orgulhosamente livres. Páginas de ouro da luta contra a opressão, no nosso país, foram lavradas com o sacrifício e com o sangue de alguns dos nossos melhores. Muitos pagaram com a vida o seu apego à liberdade. Lembro os sentenciados da Revolução de 16 de Maio de 1828, Gravito e seus companheiros, soldados ainda pouco conhecidos da luta contra o miguelismo. Em sua memória ergueu-se singelo monumento no velho cemitério da cidade. As suas cabeças rolaram. A evocação da morte horrenda desses homens fez-me recordar a famosa carta de Jorge de Sena a seus filhos sobre os fuzilamentos de Goya. E fico em silêncio: «Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam amanhã. E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é só nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.»
Muitos outros mais enobreceram, com o seu esforço e energia, com o seu saber e teimosia a história do liberalismo, da primeira república e da nossa novel democracia. Perdoar-me-ão se, entre tantos, referir apenas quatro aveirenses: José Estêvão (1809-1862), Mendes Leite (1809-1887), Mário Sacramento (1920-1969) e José Afonso (1929-1987). Porque eles representam, de forma diversa, a luta contra a opressão da nossa história contemporânea. A luta pela dignidade humana. Batalha sem fim.
Curvo-me perante a memória do combatente destemido que foi José Estêvão, condecorado por actos de bravura contra as tropas miguelistas, exilado político, democrata da Revolução de Setembro de 1836, tribuno eloquente e inflamado, que marcou a história parlamentar portuguesa, professor de economia política, na Escola Politécnica, Grão-Mestre da Maçonaria, amigo da infância desvalida, advogado brilhante, defensor dos melhoramentos materiais, nomeadamente da passagem do caminho-de-ferro por Aveiro, contra todas as leis da economia, como referiu Pinho Leal. Foi imortalizado no bronze de Simões de Almeida pela vontade de um punhado de republicanos, que o colocou em frente dos paços do concelho, em 1889.
José Estêvão é o nome maior desta cidade, símbolo desse apego à liberdade, ao espírito autonómico que move montanhas e permite explicar o desenvolvimento desta região. No início do século XX houve quem visse no facto de poucas mulheres quererem ser criadas – na sua maioria eram costureiras e domésticas – uma manifestação do espírito de independência que caracterizava as gentes de recursos modestos, na cidade.
Curvo-me perante a memória desse soldado da liberdade que foi Manuel José Mendes Leite, companheiro de José Estêvão, com quem fundou a Revolução de Setembro. Foi advogado, deputado, presidente do município e governador civil de Aveiro. Dele diz Jorge C. Henriques: «A sua vida é um poema à liberdade. Uma vida passada nas academias, no exílio, nas prisões, nos campos de batalha, onde quer que se soltasse um brado pela liberdade, nas revoluções populares, nos parlamentos democráticos, no associativismo e na administração pública». Mas o que lhe deu justamente direito ao «céu da memória» foi o seu pioneiro e extraordinário contributo para a abolição da pena de morte, por crimes políticos, em Portugal. O famoso aditamento, apresentado em 10 de Março de 1852, seria depois integrado no artigo 16.º do I Acto Adicional à Carta Constitucional. (Quinze anos mais tarde foi abolida a pena de morte para crimes civis, por proposta de outro aveirense, o Dr. António Luís de Seabra).
Eduardo Coelho, jornalista do Diário de Notícias, escreveu então o folhetim História do último carrasco em Portugal, e ofereceu-o a Victor Hugo, o autor do Último dia de um condenado. Pouco tempo depois, Eduardo Coelho recebia uma carta memorável, onde o celebrado escritor francês afirmava:

Recebi o vosso folhetim e a vossa eloquente carta. Está, pois, a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. Felicito os vossos escritores, os vossos pensadores, os vossos filósofos; felicito o vosso parlamento. Abolir a pena de morte legal e deixar à morte divina todo o seu poder e todo o seu mistério é um progresso, augusto entre todos. Portugal gozará de antemão essa nobre conquista. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Ódio ao ódio! Viva a vida! A liberdade é uma grande cidade, da qual todos nós somos concidadãos. Aperto-vos a mão como a meu compatriota na humanidade, e saúdo o vosso generoso e eminente espírito.

Curvo-me perante a memória do corajoso militante antifascista que foi Mário Sacramento, organizador e principal impulsionador dos Congressos da Oposição Democrática, durante os anos de chumbo da ditadura salazarista. Foi preso pela polícia política cinco vezes; a primeira com apenas 17 anos de idade. Sobre ele escreveu Monsenhor João Gaspar: «Sendo um humanista, combateu pelo ideal de uma sociedade mais justa, onde nunca existisse a exploração do homem pelo homem, onde os direitos humanos fossem respeitados e onde a ignorância e a miséria não tivessem lugar».
O médico dedicado, o homem tolerante e bom foi um cidadão íntegro e um intelectual exemplar, um ensaísta influente e um crítico literário, de quem Óscar Lopes afirmou um dia: «esquecê-lo não seria apenas uma injustiça, seria uma mutilação, porque lhe devemos muitas das páginas de maior finura ensaística, em matéria de interpretação literária, de reflexão teórica e de análise ou directriz política.»
No velho cemitério da cidade, na lápide da sua última morada, Mário Sacramento deixa-nos um apelo, expressando, de forma singular, o seu maior desejo: «Façam o mundo melhor».
Curvo-me perante a memória de José Afonso, o cantor de Grândola Vila Morena, Traz outro amigo também, Somos filhos da madrugada e de tantas outras canções, o «grande trovador moderno», que «soube conciliar a música popular portuguesa e os temas tradicionais com a palavra de protesto». Com ele – é Manuel Alegre quem o diz – «a canção de Coimbra não voltaria a ser a mesma, a música ligeira portuguesa também não. Aquela balada era nova e ao mesmo tempo muito antiga. Tudo estava nela: a tradição trovadoresca, os cantares de amigo, os romances populares. E também o espírito de um tempo de mudança.»
José Afonso era «um libertário em estado quase puro» – continuemos aferrados ao belo testemunho de Manuel Alegre –, num tempo em que «a poesia, a guitarra e o canto» eram armas poderosas contra a opressão salazarista. Zeca Afonso era um «revolucionário franciscano», diz o poeta de O Canto e as Armas, «irritado por vezes com o seu desprendimento de tudo e de si mesmo». E acrescentava: «Talvez as sociedades não consigam suportar a força subversiva de um tal despojamento. Por isso o Zeca foi tantas vezes censurado. Por isso continua simultaneamente a encantar e a incomodar. Eu sei que gostariam de transformá-lo em álibi ou torná-lo inofensivo depois de morto. Mas não é possível. A sua voz está tão cheia de ternura que será irremediavelmente subversiva». Nas palavras sublimes de António Portugal encontramos o epitáfio-monumento: «Um homem cuja voz foi a nossa voz durante muitos anos e que ajudou a tornar possível o nosso encontro colectivo com uma identidade perdida e com um destino que hoje orgulhosamente assumimos.»
Em praticamente todos os domínios da vida colectiva houve aveirenses que marcaram o seu tempo, a cidade e a região. Na vida pública, nas artes, nas letras e nas ciências. No passado e no presente. Alguns convivem connosco na memória colectiva, de forma viva, ganhando colorações novas, contornos renovados em cada evocação. Outros temo-los, silenciosos, na toponímia. Um pequeno punhado na escassa e discreta estatuária da cidade. Outros ainda habitam, esquecidos, amarelecidas páginas de estudos académicos. Todos os dias os (re)descobrimos porque precisamos deles. Porque ninguém decide sem memória. Orgulhamo-nos de todos. São nossos. Queremo-nos seus herdeiros. Sentimo-nos seus herdeiros.

3. A interacção Homem-Natureza engendrou em Aveiro uma paisagem urbana que bem pode ser definida pelo binómio Tradição-Modernidade. Um rico património cultural milenar coabita harmoniosamente com o que de melhor se faz hoje em Portugal. Dos testemunhos do período megalítico (como em Mamodeiro e no Crasto, Verdemilho), aos vestígios da presença romana (como em Cacia e em Eixo); do riquíssimo património religioso da Época Moderna, à diversa e sinfónica arquitectura dos séculos XIX e XX, Aveiro harmoniza de forma especial a Tradição com a Modernidade. No notável Campus Universitário de Santiago encontramos a melhor e mais marcante arquitectura portuguesa. Reconhecida internacionalmente. Obra conjunta de alguns dos mais consagrados arquitectos portugueses: Siza Vieira, Souto Moura, Alcino Soutinho, Vítor Figueiredo, Gonçalo Byrne, Carrilho da Graça, Adalberto Dias, Nuno Portas, Firmino Trabulo, Lopo Prata, Matos Ferreira, João Almeida, Vítor Carvalho, entre outros. Conjunto arquitectónico que alia a cor dominante do tijolo às manchas verdes, numa clara intenção de valorização, recuperação e requalificação de toda a zona lagunar em que se situa. Diz Rui Tavares que o reconhecimento internacional desta arquitectura «prolonga a singular e suprema posição da cidade de Aveiro no contexto arquitectónico nacional, onde se encontram representados – com obras muito representativas – todos os melhores arquitectos portugueses de todos os momentos e todos os sectores construtivos, a par de alguns estrangeiros: João Antunes, Araújo e Silva, Ernest Korrodi, Januário Godinho, Rogério de Azevedo, Moreira da Silva, Fernando Távora, Carlos Loureiro, Gonçalo Ribeiro Teles, José Semide, Robert Auzelle, Pedro Ramalho. Extensa galeria de consagrados que consagram para sempre o que de melhor ambicionaram os homens influentes no governo da cidade.»
Vasto e diverso património arquitectónico esse. A respeitar pelo que significa. A olhar demoradamente. Lembro alguns edifícios. A relação é longa. No limite é quase toda a cidade. Paços Municipais (1794-1797); Liceu de Aveiro, hoje Escola Secundária Homem Cristo (1860); Quartel de Sá (1885-1888); Fábrica Campos, hoje Centro Cultural e de Congressos (1915-1917); Palacete Visconde da Granja, vulgo Casa das Zitas (séc. XIX-1919); Teatro Aveirense (1881-1949-2003); Hospital da Misericórdia (1900-1924); antiga Capitania do Porto de Aveiro (1903); Fábrica de Moagem (1903); Palacete Major Pessoa (1904-1909); Casa do Dr. Lourenço Peixinho (1908-1910); Pensão Ferro (1908-1910); Casa da Cooperativa Agrícola (1913); Estação dos Caminho-de-Ferro (1915-1916); Mercado Manuel Firmino (1940); Seminário Diocesano de Santa Joana (1942-1952); Hotel Arcada (1942); Cine-Teatro Avenida (1945-1949); Antigo Edifício Municipal de Cultura e Biblioteca (1963-1970). Estes são alguns dos imóveis, entre tantos outros, que merecerão a sua atenção, caro visitante.
Os templos marcam a cidade. Desde sempre. Ordenam-na. Dão-lhe sentido. O Templo, como a Casa e a Cidade, já o dizia Santo Agostinho, representa simbolicamente o centro do cosmos. O espaço brota do templo. O templo é, ao mesmo tempo, o homem e o mundo. Interior e exterior. Templo interior – coração de cada homem. Lugar de comunhão, em demanda da luz, do conhecimento, da imortalidade. Templo exterior – arquitectura. A arquitectura do templo, diz Chevalier, é a imagem que o homem faz do divino: a efervescência da vida no templo hindu, a medida nos templos gregos, a aliança entre a terra e o céu nas mesquitas, a sabedoria e o amor nos templos cristãos.
Sabedoria e amor. Tolerância. Em Aveiro há templos de oito igrejas. Oito credos diferentes. Diversidade de olhares. Unidade cósmica. Mas a paisagem urbana é marcada pelos templos que a catolicidade foi erguendo desde a Idade Média aos nossos dias. Templos grandes e pequenos. Mais capelas do que igrejas. Capela da Senhora da Alegria (1554); Capela de S. Bartolomeu (1568); Capela dos Santos Mártires (1670). Capela do Senhor das Barrocas (1707); Capela de S. Gonçalinho (1712); Igreja de S. Domingos (actual Sé) (1423); Igreja da Misericórdia (1600-1669); Igreja da Senhora da Apresentação (1606); Igreja do Carmo (1613-1620); Igreja das Carmelitas (séc. XVII); Convento de Santo António (1524); Convento de Jesus (1458-1462). Espaços de culto. Mas também espaços de conservação. Em cada um deles há um riquíssimo património a desfrutar. Retábulos. Tecidos. Azulejaria. Talha dourada. Pintura. Estatuária. Histórias sobrepostas que esperam os nossos olhos. As nossas almas. Espaços de silêncio e de luz. De recolhimento.
No Convento de Jesus (Museu de Aveiro), entre tantos motivos para ver com detalhe, está patente o mais belo dos túmulos da região – a arca tumular da padroeira da cidade, Santa Joana Princesa (1452-1490). Como refere José Maria Lopes, este túmulo, fruto de um compromisso entre uma nova linguagem e a tumulária tradicional, «destaca-se pela singularidade decorativa e por alguma inovação iconográfica. Delineada por João Antunes, em 1699, a arca sepulcral é um verdadeiro prodígio de técnica, nomeadamente no trabalho de incrustações em mármore, belíssimo efeito policromático». José Maria Lopes acrescenta: «A arca tumular é revestida de representações invulgares na tumulária portuguesa: os tradicionais elefantes são substituídos por anjos que ladeiam duas fénix e que suportam o conjunto. Nas faces laterais sucedem-se algumas representações hagiográficas relacionadas com o processo de beatificação da princesa – filha do rei D. Afonso V, o Africano – nomeadamente um crucifixo, uma coroa de espinhos e uma palma que atravessa o diadema da princesa. A arca é encimada por querubins que amparam as armas reais.»
Também o túmulo do bispo D. Manuel de Moura Manuel, na capela de Nossa Senhora da Penha de França, na Vista Alegre, obra do escultor francês Claude de Laprade, deve merecer a sua atenção, caro visitante. Sigamos guiados pela mão de José Maria Lopes, o escultor que estudou este mausoléu: «o magnífico túmulo episcopal retoma a temática do jacente, apropriando-se de alguns elementos iconográficos provenientes das tipologias medievais, nomeadamente a representação heráldica e os suportes em forma de leão. Sob o arcossólio soergue-se, inserido em aparatosa composição escultórica, a figura do bispo. Um alto-relevo do Pai Tempo, auxiliado por duas figuras aladas, levanta a colcha mortuária do prelado que, num último alento, contempla a imagem da Senhora da Penha de França. O cenotáfio, repleto de lúgubres alusões à morte, é encimado por uma cruz, sob a qual se estende uma larga tarja onde se pode ler a inscrição Memento Homo. Guarnecem este friso, respectivamente do lado esquerdo e do lado direito, duas figuras alegóricas da Fortaleza e da Justiça.»
Habitualmente mais atentos à arquitectura, à azulejaria, ao movimento urbano – pessoas, carros, apitos, ruídos –, distraídos pelo impacto visual dos anúncios e marcas comerciais, que conferem às urbes contemporâneas uma característica cultural própria, quase ignoramos as árvores. Sem árvores as paisagens urbanas seriam diferentes. Inumanas. Estranhas. Além de melhorarem a qualidade do ar que respiramos, as árvores propiciam uma redução da poluição sonora, a melhoria do microclima das cidades, e facilitam a fixação da avifauna.
Desconhecemos os nomes de muitas delas como ignoramos os muitos usos que já tiveram ou têm, mas não nos são estranhas. Perdemos a memória dos significados que as árvores tiveram no passado, mas não nos privamos delas. Na Idade Média havia árvores «boas», muito admiradas e valorizadas (como o carvalho, o castanheiro, a oliveira, o pinheiro, a tília ou o freixo) e árvores «más» (como a nogueira, o amieiro ou o teixo), categoriza¬ção que determinava os seus usos. Admi¬rada pelo seu perfume, pela beleza, imponência e longevidade, a tília, por exemplo, era investi¬da de qualidades protectoras (plantava-se diante das igrejas). A tília era a vedeta da farmacopeia medieval e a sua madeira era a preferida na escultura reli¬giosa como na produção de instrumentos musicais pela sua ductilidade. O freixo, árvore venerada pelos Germânicos, considerado um mediador entre o Céu e a Terra, dava a madeira para armas de arremesso (lanças, dardos, flechas, etc.). Contrariamente, o teixo, árvore venenosa associada à morte, como o atestam os nomes alemão (todesbaum) e italiano (albero della morte) ou latino (ta¬xus), pró¬ximo da ideia de veneno (toxicum), era usado no fabrico de arcos e especialmente de flechas.
A população protesta contra o abate de árvores. A população gosta das árvores. Gosta das suas cores, das suas flores, da sua sombra, das aves que acolhem no silêncio da noite. O arboreto das ruas de Aveiro conta, entre uma trintena de espécies – recentes ou centenárias –, acácias, choupos, freixos, tílias, castanheiros, plátanos, ulmeiros, jacarandás, bétulas, magnólias, olaias, palmeiras, etc.
Mas não é só na paisagem urbana, na arquitectura, no património cultural que o binómio Tradição-Modernidade se faz sentir. Em muitos outros domínios da vida colectiva, Aveiro compendia manifestações de tradição e de modernidade. As festas e romarias, as procissões, o folclore, a gastronomia e a doçaria conventual, de um lado, o saber universitário e a inovação empresarial, de outro. O antigo e o novo. A Universidade de Aveiro – uma das melhores escolas superiores do país – é expressão dessa modernidade, dessa sede de futuro, que pulsa nas várias disciplinas científicas, artísticas, tecnológicas e pedagógicas ali estudadas, em íntima ligação com a empresa, com a sociedade. Também o mundo dos negócios aveirense integra a nata empresarial do país.
O município de Aveiro tem cerca de 75.000 habitantes. A sua distribuição ocupacional não surpreende ninguém. Segundo dados referentes a 1999, o sector primário ocupa 1,6% da população, o sector secundário – 24,5% e o sector terciário – 73,9%. A taxa de desemprego oscilou, nos últimos anos do século XX, entre os 1,5 e os 2%. Como se pode ver, sem sobressalto, o mundo rural desapareceu. Desapareceu igualmente o mundo do trabalho na ria e no mar. O mundo da fábrica está em colapso também. O município terciarizou-se. Resistem algumas manchas. Teimam algumas bairros. Os nossos avós, os nossos pais ainda foram pescadores, marnotos, camponeses, operários. Os nossos filhos, os nossos netos não terão essa herança. Com o fim dessas actividades é todo um universo cultural que desaparece. É um outro mundo que emerge. Das festividades ligadas ao calendário religioso à gastronomia e às sociabilidades é um outro mundo que desponta. Um mundo novo, ainda preso ao antigo pelo frágil cordão umbilical da memória, mas que a televisão, o marketing turístico e a globalização irão mutilar ou cortar nas próximas décadas. De forma irreversível.
É neste quadro que devemos compreender as dificuldades por que passam os diversos grupos folclóricos. Rica memória que resiste. Em busca das suas origens. Em busca de um novo estatuto. De novos públicos.
É também neste quadro que devemos perceber a emergência de um associativismo de tipo novo, de cariz marcadamente urbano, fenómeno que conta em todo o município mais de uma centena de associações culturais, recreativas e desportivas – umas recentes, outras com cerca de dois séculos de existência –, e que constitui uma poderosa promessa de futuro. Do teatro à música, da poesia à dança, estas associações agitam-se. Expressam-se. Reivindicam. Querem dominar o espaço da cidade. Como seu.
É igualmente neste contexto de mudança que, ano após ano, as festas são reinventadas. A mais afamada, a mais genuína, a que melhor tem sabido resistir ao tempo, a este tempo que tudo dessacraliza, é a festa de S. Gonçalinho, na freguesia da Vera Cruz. A festa das cavacas. A festa dos «cagaréus». Gente do mar. Todos os anos, no fim-de-semana mais próximo do dia 10 de Janeiro, as ruas da beira-mar são coloridas com enfeites, doceiras, foguetes, música e muita gente que se agita em redor do templo de S. Gonçalo. Santo casamenteiro das velhas. Santo rapioqueiro, diz a cantiga: «Ó santo casamenteiro, casai as feias e as belas, nosso santo rapioqueiro, não te esqueças das donzelas. S. Gonçalo de Amarante, casai-me que bem podeis, já tenho teias de aranha no sítio que vós sabeis». As cavacas são lançadas da torre da capela como agradecimento ao santo. Promessas. Doenças curadas. Um mal aliviado. «O lançamento de cavacas simboliza o pão distribuído por S. Gonçalo aos pobres e aos leprosos». O povo apinha-se no largo da capela para apanhar as cavacas lançadas lá do alto. Para isso todos os meios são bons: com as mãos, com guarda-chuvas virados ao contrário, com redes, etc.
Na freguesia da Glória, a Sul do Canal Central, terra de «ceboleiros», terra de gente mais ligada ao campo, merece menção a Procissão das Cinzas. Mas é a Procissão de Santa Joana Princesa, padroeira da cidade, o ponto alto das festividades de Maio. Esta procissão é a cerimónia de maior pompa, que mobiliza um elevado número de associações e pessoas de todo o município. Como refere Artur Jorge Almeida, «no dia 12 de Maio (feriado municipal), com toda a solenidade, os membros da Real Irmandade de Santa Joana, no esplendor das suas opas, acompanham os andores com as imagens de S. Domingos e da Princesa, num cortejo a que se associam as forças vivas da cidade».
Na freguesia de S. Jacinto, a tradicional romaria dos pescadores da Senhora das Areias fecha o ciclo das festividades populares. Mas é a festa das flores, em S. Bernardo, que merece um olhar atento. Trata-se de um fenómeno novo. É uma festa dos novos tempos, feita com a memória de tempos idos. De outras paragens. Os moradores de cada rua da freguesia atapetam o adro da igreja com flores de mil cores. É um espectáculo para os olhos. Efémero. Como a vida.
De um tempo novo, também, um tempo de conservação, um tempo de hedonismo, são as festas de Verão: festas da ria, festas dos moliceiros, festas do artesanato, festas dos ovos moles. Gosto imenso de ovos moles. Doce conventual, cujas origens parecem remontar ao século XVI. Doce de mesas ricas em épocas festivas. Doce tradicional muito procurado pela elegância do seu paladar. Doce servido em barricas de madeira. De porcelana. Doce com forma de peixinhos, mexilhões, búzios e conchas. O melhor doce do mundo? Não sei. Consabidamente é o melhor embaixador da cidade e da região. Segundo a Associação de Produtores de Ovos Moles de Aveiro, que se tem batido pela sua certificação, em 2003, em toda a região demarcada da ria de Aveiro, foram produzidas 345 toneladas de ovos moles, produto de treze milhões de ovos!
Caro visitante, está a chegar ao fim este nosso passeio pela cidade da ria. Dei-lhe a conhecer um pouco do muito que há para descobrir. Esqueça as minhas palavras e desperte os sentidos. Ponha-se a caminho. Como lhe disse antes. Na cidade, ande de bicicleta. De buga. A buga é uma bicicleta de utilização gratuita de Aveiro, criada pela Câmara Municipal de Aveiro, em 2000. A buga tem um desenho e fabrico exclusivo. A cidade está cuidada. A cidade está linda. Pegue numa buga e descubra o que estas páginas não lhe podem oferecer. É de utilização livre e gratuita. Deixe o carro e vá de buga.

Manuel Ferreira Rodrigues

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